quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

ENCANTARIA

São Luís do Maranhão possui duas veneráveis casas matrizes de tambor-de-mina, religião de base afro-brasileira; a Casa Grande das Minas e a Casa de Nagô. A primeira cultua apenas os voduns, a segunda cultua também orixás, encantados e caboclos. A Casa de Nagô deu origem a inúmeros terreiros que difundiram a encantaria por toda ilha de São Luís.

Do Maranhão o tambor-de-mina chegou ao Pará, travou contato com a pajelança indígena e ganhou outras cores , absorvendo inúmeros novos encantados ao seu panteão. Hoje quero fazer algumas observações sobre eles, os encantados, entidades que me fascinam profundamente.

Vale esclarecer algumas dúvidas. Na encantaria, por exemplo, o termo caboclo não é sinônimo de entidade ameríndia, podendo ser genericamente utilizado para designar entidades de variadas origens. Os caboclos, ou encantados, se reunem em famílias, com um chefe e suas linhagens, que abrangem turcos, índios, reis, nobres, marujos, princesas, etc.

Os encantados não são espíritos desencarnados; são pessoas, ou até animais, que viveram mas não chegaram a morrer, sofreram antes a experiência do encantamento e foram morar no invisível. De vez em quando saem de lá, pegam carona na asa do vento e vêm à terra, no corpo dos iniciados, para dançar, dar conselhos, curar doenças, jogar conversa fora e matar as saudades do povo que continua por aqui.

A família mais famosa de encantados é a do Lençol. Dizem que lá, na praia do Lençol - Maranhão -, mora o Rei Dom Sebastião, que encantou-se durante a batalha de Alcácer-Quibir. Essa família é formada apenas por reis e fidalgos. A vinda do Rei Dom Sebastião ao corpo de uma sacerdotisa é muito rara, alguns falam que ocorre de sete em sete anos. Da família do Lençol fazem parte ainda, dentre outros, Dom Luís, o rei de França; Dom Manoel, conhecido como o Rei dos Mestres; a Rainha Bárbara Soeira; Dom Carlos, filho de Dom Luís, e o famoso Barão de Goré, tremendo cachaceiro e chegado num furdunço dos brabos.

Outra família famosa de encantados é a da Turquia, chefiada por um rei mouro, Dom João de Barabaia, que lutou contra os cristãos. É a esta família que pertence a Bela Turca, a cabocla Mariana, que vem ao mundo não apenas na forma de turca, mas também como marinheira, cigana ou índia.

Tive a oportunidade de ver e conversar algumas vezes com Dona Mariana, que nessas ocasiões falou da minha vida e me deu conselhos absolutamente pertinentes. Sempre que este privilégio aconteceu a Bela Turca apresentou-se como uma marinheira.

Lembro-me, comovido, da cantiga que era entoada para a chegada de Dona Mariana. Nunca ouvi essa cantiga gravada e não sei se é das mais famosas para saudar a encantada - sei apenas que ela ainda borda de alumbramentos minha crença e minhas lembranças :

Lá fora tem dois navios
No meio tem dois faróis
É a espada da marinha
Brasileira Mariana
Lá na praia dos Lençóis.
Ela é marinheira
Ela é marinheira
Ela é revoltosa
Da marinha brasileira

Já pensaram, amigos, o que um cartesiano de carteirinha, um filho da tradição racionalista das luzes, diria disso tudo? Eu não faço a menor questão de saber. Prefiro acreditar, como disse o mestre João Rosa, que o homem não morre; o homem se encanta. Volto ao tema em breve.

Axé.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

PROFISSÃO DE FÉ

(Eu, o maiorzinho, ao lado de meu irmão Alexandre, na função de Ogã da casa de Xambá de minha avó, Deda de Xangô, nos anos 70)

Senhoras e senhores, sou um camarada convencido da absoluta falência dos modelos ocidentais de interpretação do mundo, que produzem um radical e perverso desencantamento do mesmo. O ocidente inventou os famosos "ismos" - o iluminismo, o liberalismo, o capitalismo, o marxismo, o jornalismo, o pós-modernismo...ismos pacas, enfim. Não vejo, aí, qualquer chance de salvação.

Sou, nesse sentido, um adepto da idéia de que os legados ocidentais tem que ser redimensionados. Produzem, insisto radicalmente nisso, um mundo insosso, previsível e desencantado. A herança da salada judaico-cristã e tecnicista gera culpa, arrogância, desejo de consumo e depressão em série. Eis o que a arrogante cultural ocidental produziu - depressivos em massa, miseráveis em série e consumidores em bandos.

Eu, de minha parte, fui agraciado pelos deuses. Nasci em uma família adepta dos Orixás. Minha vó - que me criou - era uma Yalorixá pernambucana radicada no Rio de Janeiro e comandava um terreiro de xambá na cidade de Nova Iguaçu. Para os que não sabem, o xambá é um culto de origem nagô, como os candomblés da Bahia, fortemente mesclado com elementos bantos e ameríndios.

Cresci ali, fascinado pela dança magnífica dos Orixás, impressionado pela imponência dos caboclos e seduzido pelo toque misterioso dos tambores que enchiam de encantamento as minhas madrugadas.

Quando entrei para a faculdade de História, resolvi, com a arrogância clássica dos estudantes das ciências humanas - sempre se sentindo capazes de entender o mundo, compreender os anseios do povo e apresentar soluções políticas messiânicas para os males sociais - negar a religião ( o ópio do povo, ora bolas) e declarar com vigor meu ateísmo.

Mas, num momento absolutamente vazio da minha vida, reencontrei, de uma forma impressionante (um dia eu conto), o caminho da infância e o toque dos tambores. Mergulhei sem receios, fiz amigos, compartilhei da mesa farta das comidas de santo e fui consagrado, sob a condução de Ogum, meu pai, sacerdote de Ifá, reestruturando o elo de ancestralidade que a minha velha avó teceu.

Esse é o meu mundo, essas são as minhas comidas, esses são os meus deuses. Eles dançam o tempo todo. Não acredito em milagres, mas creio no axé - a potencialização do deus que há em mim e que me ajuda a lidar com os perrengues do cotidiano.

Se eu faço política? Claro que sim. Eu faço política quando canto, toco, danço, imolo animais, respeito os mistérios do rio, evoco meus ancestrais na casa de Egun e digo aos arrogantes de plantão que cultuo os deuses que atravessaram o Atlântico nos porões imundos dos tumbeiros para nos civilizar.

Orunmilá, o senhor do Ifá, o mais sábio dos Orixás , conhecedor dos destinos, determinou que assim fosse. Ogum autorizou. Obatalá é o dono da minha casa - meu ilê. Exu, o compadre, mora na minha varanda, vive na minha esquina e me acompanha nas cervejas e batuques; ele bate comigo palmas ritmadas no compasso do partido alto. É dele, sempre será dele, Exu Odara, o senhor da alegria, o primeiro gole de cada entardecer da minha vida. Olorum modupe!

BABALAWOS NO BRASIL

(Texto escrito em parceria com o babalawo Ifasinmy, Cláudio Ribeiro Falcão)

A tradição sobre a implementação dos primeiros axés de origem nagô no Brasil aponta para o papel fundamental dos babalawos. Nos relatos sobre a fundação da Casa Branca do Engenho Velho, se destaca a famosa viagem de Iyanassô ao continente africano, da qual teria retornado acompanhada por Rodolfo Martins de Andrade, o babalawo Bamboshe Obitiku. Outro babalawo, Martiniano Eliseu do Bonfim, o mais famoso da Bahia em seu tempo, teve papel crucial na formação do Axé Opô Afonjá. Pouco depois, Pierre Fatumbi Verger desempenhou, como sacerdote e estudioso, a função de fazer a ponte entre Brasil e África, reafirmando a função do Atlântico Sul como um espaço civilizatório.

Apesar do papel fundamental na estruturação do culto, a figura do babalawo foi perdendo espaço no país, até chegar praticamente a desaparecer. Quanto a este ponto, Roger Bastide indica um conflito por status social entre babalorixás e babalawos, que culmina com a vitória dos primeiros. Diz também que a derrota do babalawo foi, em grande parte, a de um sistema de adivinhação mais complexo, com o opelê de Ifá e os caroços do dendezeiro (ikins), para um outro mais simples, com os búzios. Bastide não considerava, porém, essa história encerrada. Para ele, os búzios tinham vencido o colar de Ifá, mas nova ofensiva e regresso de Ifá eram sempre possíveis.

Tal fato, por determinação de Olorum, aconteceu. Nas duas últimas décadas do século XX os babalawos voltam a ser ativos personagens da religião de orixá no Brasil, com destaque maior para a tradição nigeriana em São Paulo e para a tradição cubana no Rio de Janeiro. No caso do Rio, nossa seara, alguns esforços para a retomada do conhecimento de Ifá foram feitos no final dos anos 70 por estudantes nigerianos, mas apenas com a chegada do babalawo cubano Rafael Zamora Dias, o culto sistematizou-se. Em breve, iniciações de sacerdotes de Ifá estavam sendo feitas no Brasil. Somos, os autores deste texto, babalawos iniciados neste contexto de retomada, no final de 2001. Este retorno dos babalawos traz uma série de riscos e desafios que passamos a discutir.

Inicialmente é necessário dizer que o desaparecimento da figura do babalawo não significou a perda da essência de Ifá. Vários procedimentos litúrgicos adotados no candomblé encontram suas bases nos versos de Ifá, mesmo que Iyalorixás e Babalorixás desconheçam as exatas referências. Como exemplo, podemos citar as regras de conduta que as yaôs devem seguir. Elas se referem ao exercício da paciência, da humildade e do respeito à hierarquia, e fazem parte da busca pelo Ìwàpèlè, o bom caráter, cujos princípios se encontram nos versos do Odú Ogbe-Otura. Para o iorubá, a busca por Ìwàpèlè é o principal objetivo da existência humana, e a essência da conduta religiosa consiste em cultivar o bom caráter.

O grande risco que a volta dos babalawos apresenta está, queremos crer, na velha disputa entre estes e os sacerdotes de orixá, já delineada por Bastide nos anos 40. Para evitá-lo, é necessário que os babalawos reconheçam a tradição de orixá brasileira e a excelência de vários de seus sacerdotes. Alguns babalawos devem tomar cuidado ao negar a tradição de orixá, já que a mesma encontra-se plenamente justificada nos textos sagrados de Ifá. Acreditar que o culto de Ifá é desvinculado do culto de orixá, e vice-versa, é uma falsa questão, que não se justifica liturgicamente. Faz-se necessário que babalawos, iyalorixás e babalorixás reflitam sobre esse problema, em busca de uma convergência religiosa que engrandeça a religião no Brasil.

Considerando que a reintrodução dos sacerdotes de Ifá é recente, estes não podem tentar afirmar o seu poder e sua presença em uma discutível idéia de pureza e superioridade hierárquica. A valorização do seu papel virá do reconhecimento de que há muito que se aprender com a tradição de orixá que o Brasil desenvolveu. O reconhecimento dos babalawos pelos sacerdotes de orixá só se estabelecerá em razão da excelência litúrgica e postura ética e moral dos sacerdotes de Orunmilá.


É preocupante, também, que sacerdotes de orixá e intelectuais ligados a casas de culto, que muitas vezes atuam como verdadeiros porta-vozes das mesmas, insistam em ignorar o retorno de Ifá e dos babalawos ao Brasil, muitas vezes considerando que estes fazem parte de uma religião distinta da sua. Cabe, então, aos terreiros de candomblé reconhecer a figura dos babalawos, bem como a possibilidade de revitalização do culto que o conhecimento da palavra de Orunmilá permite.

Como exemplo, podemos mencionar o culto aos ancestrais, o sentido litúrgico do ritual do axêxê, o já citado conceito de Ìwàpèlè, a cosmogonia e os valores éticos e morais da religião, o papel da energia feminina das Iyami e as funções desempenhadas por Exu. Todos esses elementos, sem os quais o próprio sentido da religiosidade se perde, estão fundamentados no corpo literário de Ifá.

Quando escreveu fundamental resenha sobre o livro Candomblé da Bahia, obra seminal de Roger Bastide citada acima, o escritor Nei Lopes ressaltou que a presença de babalawos e a força que adquiriu o culto a Ifá foram os acontecimentos mais relevantes que a religião afro-brasileira vivenciou nos anos de 1990. Cabe, agora, dimensionar esse fato para que a religião se fortaleça cada vez mais na nossa terra.

Aboru Boye

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

PARA CONHECER O ODU PESSOAL

Para se conhecer o Odu pessoal só há um caminho - perguntar a Orunmilá . Segundo o conhecimento revelado, Orunmilá é o único orixá que testemunha a escolha do destino de todos os homens. O iorubá acredita que cada um de nós escolheu um destino ( Odu ) no momento de sair do Orum (o invisível ) para vir ao Ayê ( o nosso mundo ). Orunmilá foi o único orixá que recebeu de Olorum o poder de assistir a essa escolha. É ele, portanto, que conhece o Odu de cada um. Basta , para se conhecer o Odu pessoal, perguntar a quem já o conhece - Orunmilá. E como Orunmilá responde ? Conto rapidamente , e de forma resumida, uma bela história de Ifá para que os amigos compreendam :
Orunmilá tinha oito filhos. Um dia , em virtude da realização de um importante ritual , Orunmilá reuniu toda a sua prole. Sete dos seus filhos lhe renderam homenagens, ofereceram-lhe sacrifícios e prostaram-se aos seus pés. Um deles, porém, desrespeitou o pai . Orunmilá, indignado , abandonou o Ayê e foi para o Orum . A desgraça abateu-se sobre a terra. A chuva não vinha, os animais não procriavam e as plantas não cresciam. A terra sofria com a ausência de Orunmilá.
Os filhos de Orunmilá resolveram ir ao Orum procurar o pai e clamar pela sua volta. Não adiantou. Orunmilá não viria mais ao Ayê. Com pena dos filhos, entretanto, Orunmilá os entregou dezesseis nozes de dendê e disse : Esses dezesseis caroços de dendê devem ser consultados todas vez que os homens desejarem falar comigo. Por meio deles eu indicarei , sempre que preciso, os sacrifícios necessários para que todos os problemas sejam resolvidos. Por meio deles eu revelarei os destinos de todos os homens e como eles devem proceder para ter a vida longa e a boa reputação. Quando tiverem problemas, consultem os caroços - eles são a palavra de Ifá.
Esse é um dos caminhos que falam sobre a criação do oráculo. É através da consulta a este oráculo - o ikin Ifá - que Orunmilá fala com os homens e revela a cada um o seu Odu pessoal.
A consulta para se conhecer o Odu da vida de cada um , porém , não é simples. Implica em uma cerimônia mais complexa que , em geral , tem a duração de três dias. Somente no terceiro dia o sacerdote - um Babalawo - consulta os caroços de dendê e revela a palavra de Orunmilá. É uma cerimônia magnífica e uma das mais fortes e simbólicas da religião. É , enfim , a revelação do destino.
Os amigos podem se indagar : Mas em qualquer consulta ao oráculo não há a revelação de um Odu ? Sim. Mas a consulta simples revela um Odu circunstâncial. Fala sobre uma gama de situações que o consulente está vivendo em determinada circunstância. A revelação do Odu de vida demanda cerimônias elaboradas para que o Axé esteja potencializado e o destino - os segredos da vida e da morte - se revele. Não se tira um Odu pessoal , por exemplo , sem procedimentos que prestem contas aos eguns ancestrais do consulente e , sobretudo , sem alimentar a cabeça da pessoa .
A cerimônia de conhecimento do Odu é, inclusive, a única que eu acredito que qualquer pessoa, independentemente da crença ou da religião , deveria fazer. É um mergulho esclarecedor no que há de mais profundo - a essência que cada um escolheu no Orum, diante de Olorum e Orunmilá; os caminhos para a boa vida e , sobretudo , para a boa reputação após a morte. Não há nada melhor que conhecer os caminhos do nosso Odu , para potencializar aqueles que são positivos, evitar aqueles que são negativos e transformar os ibis ( potencialidades negativas como a morte precoce, os inimigos, a miséria , as espiritualidades ruins ) em irês ( potencialidades positivas que o destino de cada um apresenta ) .
Iboru Boya

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

INTRODUÇÃO AO CONCEITO DE ODU IFÁ

Há no Brasil uma grande curiosidade das pessoas em conhecer o orixá de cabeça; quem é seu pai ou sua mãe. É compreensível. Creio, porém, que não devemos perder a dimensão de que é mais importante conhecer o odu pessoal que o orixá de cabeça. Vou tentar explicar a razão . Vamos ao primeiro passo.

Odu é uma espécie de signo que rege o nascimento de cada pessoa. A tradição iorubá aponta a existência de dezesseis signos principais, cujas combinações perfazem 256 odus. Cada um de nós é regido por um desses odus. Cada odu é composto de uma infinidade de poemas, relatando a história da criação e o papel que os orixás e uma série de outras espiritualidades exerceram nessa história primordial. O conjunto dos odus forma, então, o texto canônico sobre o qual se sustenta a tradição de Ifá.

Dentro dos odus estão os caminhos e as possibilidades que cada um de nós carregará para o resto das vidas. Nesse sentido, odu é o destino possível de cada um. Meu odu, por exemplo , contém as coisas que devo evitar, os eventos que podem colocar em risco a minha vida, as comidas que me fazem bem, as comidas que me fazem mal, minhas aptidões profissionais, minha relação com meus ancestrais, as folhas que me curam, as folhas que me matam, os ebós que me salvam, os orixás que me acompanham ... O que salva, no meu odu , pode matar, no odu de outra pessoa. Nenhum homem escapa ao seu odu. Vive os caminhos irê (positivos) ou ibi (negativos) , mas não escapa. Odu é o designo de Olorum, o deus maior.

Em cada odu, os poemas relatam as histórias dos orixás e de outros elementos encantados da natureza. Eu, por exemplo, sou filho de Ogum. No meu odu, Ogum não aparece como o guerreiro violento e conquistador. Ogum surge como o inventor do arado; agricultor e mestre ferreiro. A tendência é que a energia de Ogum se manifeste na minha vida dessa forma mais branda.

Tenho irmãos de Ifá filhos de Ogum que, entretanto, possuem odus onde os poemas que envolvem o orixá falam de violência e guerra. É assim que a energia de Ogum pode se manifestar para eles. Não se compreende a natureza do orixá de cabeça sem o conhecimento do odu e dos caminhos em que nele o orixá se apresenta. Para efeito de comparação, quem conhece apenas meu orixá sabe em que cidade eu moro. Já é muita coisa. Quem conhece meu odu pessoal, com seus caminhos, e sabe como a energia do meu orixá se manifesta nele, tem uma cópia da chave da minha casa.

Não se faz - ou não se deveria fazer - santo na cabeça de uma pessoa sem o conhecimento prévio do odu da mesma. Exemplifico. Digamos que o iaô que vai se iniciar seja filho de Xangô. Há um dos 256 odus - daqueles famosos, que todo babalaô conhece - em que Ifá revela que a energia de Xangô é forte demais para ser consagrada na cabeça de alguém. A simples menção do nome deste odu evoca os poderes do fogo. Imaginem raspar Xangô no ori de um noviço que seja desse signo. Não se raspa em nenhuma hipótese. Assim Ifá ensina, assim o sacerdote deve agir. Osa Irosun nos diz em um de seus versos : Só Orunmilá pode revelar o orixá de cabeça de cada pessoa e só Orunmilá pode determinar que orixá deve ser consagrado na cabeça de cada um. É por isso que conheço exemplos louváveis de grandes mães de santo que não fazem orixá na cabeça de ninguém sem antes consultar um babalô, para confirmar se os procedimentos litúrgicos adotados estão de acordo com as ordens do único orixá que pode estabelecer isso : Orunmilá.

Após essa rápida introdução, surge a dúvida : como se revela o odu de cada um ?

A resposta envolve a realização de uma cerimônia de iniciação relativamente complexa. Falarei sobre ela no próximo texto.
Iboru Boya !

O CURSO DE MITOLOGIAS AFRICANAS

Amigos, recebi duas mensagens de leitores querendo informações sobre o curso de Mitologias Africanas que ofereci nos últimos anos dentro de um programa de pós-graduação e oferecerei novamente em novembro. Como o curso já está em andamento - com um time de professores da melhor qualidade, como Conceição Evaristo, José Flávio Pessoa de Barros, Claudio Ribeiro Falcão e outros - resolvi disponibilizar a ementa que preparei, para que os companheiros tenham uma idéia da linha de trabalho e , quem sabe, possam adotar algumas idéias como guias de estudos. Aceito sugestões.

MITOLOGIAS AFRICANAS

O MITO COMO CONCEITO E OBJETO
- O senso comum e o mito como fabulação.
- Levi-Strauss e as estruturas mitológicas.
- Raoul Girardet e as funções políticas do mito.
- Mircea Eliade e mito como experiência vivida.
- O mito como objeto de especulação.
- Mito e História.

MITO E TEMPO NAS SOCIEDADES AFRICANAS
- O tempo cíclico
- A criação
- As versões recusáveis do real.

- O CORPO LITERÁRIO DE IFÁ
- A importância do oráculo.
- O opelê, os ikins e o meridilogum – instrumentos de contato com o sagrado.
- Os 16 Odús da criação e os seus conjuntos de mitos.
- Os 250 Odús secundários e os seus conjuntos de mitos.

OS POEMAS DA CRIAÇÃO
- Relatos, análises e discussões de poemas sagrados entre os Iorubás e os Fons.

BIBLIOGRAFIA BASICA
Abimbola. W. – Ifá: An Exposition of Ifá Literary Corps. Ibadan.Oxford University
Press, Nigeria. 1976
Bascom. W.R – Ifá Divination. Communication Between Gods and Men in West Africa
Indiana University Press. 1969.
Beniste, J. – Orun Aiye. Bertrand Brasil. Rio de Janeiro. 2000
Bolagy Idowu. E – Olodumare. Longmans. Londres. 1921
Eliade, Mircea. – Obras Completas. Martins Fontes. 1989
Girardet, Raoul – Mitos e Mitologias Políticas. Cia. das Letras. São Paulo, 1989

Muita coisa sobre essa temática aparecerá por aqui.
Iboru Boya !

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

O FISCAL DE OLORUM


Não se entende a amplitude da religião de Ifá sem uma compreensão do papel que nela representa o Imole Exu. Reconhecer a importância deste orixá é um passo fundamental para uma visão correta sobre o sistema religioso iorubá.

Diz Ifá que Olorum criou Exu a partir da Érupé (lama) e deu a ele o atributo de ser o grande Âgbá (ancestral). Sua função é a de dotar os seres de capacidade de movimento. Exu é a energia que está presente em tudo que existe. Dinamização, transformação e mobilidade são possibilidades inauguradas por esse orixá. A ausência de Exu é, portanto, a negação da vida.

Os iorubás acreditam que o homem tem a possibilidade de conhecer e alterar o seu destino. O conhecimento é revelado pelo oráculo de Ifá, sistema adivinhatório regido pelo orixá Orunmilá, que por determinação de Olodumare é o Eleripin (testemunha do destino) de todos os homens. A partir do conhecimento do destino, a alteração das coisas maléficas pode ser conseguida com a realização de ebós, oferendas e sacrifícios determinados por Orunmilá. A realização do ebó evoca energias dotadas de axé (força) suficiente para transformar o ona buruku (mau caminho) em ona rere (bom caminho).

Neste sistema, Exu é um personagem fundamental. Uma de suas atribuições é a de ser o fiscal de Olorum. É ele, portanto, que fiscaliza o babalaô, sacerdote que consulta o oráculo, para que este não minta ao consulente.

Exu é também o Elebó, senhor das oferendas. É sua função verificar se as oferendas estão sendo feitas conforme a determinação de Ifá e cabe a ele levá-las ao Orum para que sejam aceitas. Caso o ebó seja bem sucedido, Exu cumpre a determinação de trocar os maus caminhos pelos positivos. Se as oferendas não forem feitas conforme o estabelecido, Exu é aquele que, na qualidade de fiscal de Olorum, pune os responsáveis.

É Exu, portanto, que dinamiza um dos pilares fundamentais da religião dos orixás, a consulta oracular como caminho de transformação do destino de cada um. Sendo assim, fica claro que, para o iorubá, destino é sinônimo de possibilidades que se realizam ou não. O porvir, ao ser previamente conhecido, pode ser alterado.

Vale mencionar, e esse é um aspecto fundamental, que o ebó não se destina simplesmente a resolver problemas. Há percalços que são inevitáveis, e estão no odu que rege o nascimento de cada um. A função do ebó é , então , dotar a pessoa de axé para que os problemas possam ser enfrentados com maiores possibilidades de sucesso. O portador do axé é Exu.

É neste sentido que Exu costuma ser representado fumando cachimbo e tocando flauta. Ele fuma o cachimbo como quem absorve e ingere as oferendas, e toca a flauta como quem restitui o axé, a energia vital.

Outra representação famosa de Elegbara é a do falo ereto. O pau duro de Exu, que tanto chocou os pudicos missionários cristãos que foram à África no século XIX, nada mais é que o exemplo maior de dinamismo, movimento e vitalidade, atributos do senhor da transformação.

Foi provavelmente esta última imagem, um Exu teso e viril, que levou os europeus a vinculá-lo ao demônio judaico-cristão. Obcecados pelas noções de culpa e pecado, produziram em seus estudos uma visão que, pelo desejo de dominação, pelo medo, pela desonestidade e, sempre, pela ignorância, distorceu e comprometeu a compreensão do papel primordial desempenhado por Exu no sistema religioso iorubá. Recuperá-lo em sua dimensão legítima é, portanto, função de todos os que professam a religião que Orunmilá ensinou aos homens.


Iboru boya !