quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

ENCANTARIA

São Luís do Maranhão possui duas veneráveis casas matrizes de tambor-de-mina, religião de base afro-brasileira; a Casa Grande das Minas e a Casa de Nagô. A primeira cultua apenas os voduns, a segunda cultua também orixás, encantados e caboclos. A Casa de Nagô deu origem a inúmeros terreiros que difundiram a encantaria por toda ilha de São Luís.

Do Maranhão o tambor-de-mina chegou ao Pará, travou contato com a pajelança indígena e ganhou outras cores , absorvendo inúmeros novos encantados ao seu panteão. Hoje quero fazer algumas observações sobre eles, os encantados, entidades que me fascinam profundamente.

Vale esclarecer algumas dúvidas. Na encantaria, por exemplo, o termo caboclo não é sinônimo de entidade ameríndia, podendo ser genericamente utilizado para designar entidades de variadas origens. Os caboclos, ou encantados, se reunem em famílias, com um chefe e suas linhagens, que abrangem turcos, índios, reis, nobres, marujos, princesas, etc.

Os encantados não são espíritos desencarnados; são pessoas, ou até animais, que viveram mas não chegaram a morrer, sofreram antes a experiência do encantamento e foram morar no invisível. De vez em quando saem de lá, pegam carona na asa do vento e vêm à terra, no corpo dos iniciados, para dançar, dar conselhos, curar doenças, jogar conversa fora e matar as saudades do povo que continua por aqui.

A família mais famosa de encantados é a do Lençol. Dizem que lá, na praia do Lençol - Maranhão -, mora o Rei Dom Sebastião, que encantou-se durante a batalha de Alcácer-Quibir. Essa família é formada apenas por reis e fidalgos. A vinda do Rei Dom Sebastião ao corpo de uma sacerdotisa é muito rara, alguns falam que ocorre de sete em sete anos. Da família do Lençol fazem parte ainda, dentre outros, Dom Luís, o rei de França; Dom Manoel, conhecido como o Rei dos Mestres; a Rainha Bárbara Soeira; Dom Carlos, filho de Dom Luís, e o famoso Barão de Goré, tremendo cachaceiro e chegado num furdunço dos brabos.

Outra família famosa de encantados é a da Turquia, chefiada por um rei mouro, Dom João de Barabaia, que lutou contra os cristãos. É a esta família que pertence a Bela Turca, a cabocla Mariana, que vem ao mundo não apenas na forma de turca, mas também como marinheira, cigana ou índia.

Tive a oportunidade de ver e conversar algumas vezes com Dona Mariana, que nessas ocasiões falou da minha vida e me deu conselhos absolutamente pertinentes. Sempre que este privilégio aconteceu a Bela Turca apresentou-se como uma marinheira.

Lembro-me, comovido, da cantiga que era entoada para a chegada de Dona Mariana. Nunca ouvi essa cantiga gravada e não sei se é das mais famosas para saudar a encantada - sei apenas que ela ainda borda de alumbramentos minha crença e minhas lembranças :

Lá fora tem dois navios
No meio tem dois faróis
É a espada da marinha
Brasileira Mariana
Lá na praia dos Lençóis.
Ela é marinheira
Ela é marinheira
Ela é revoltosa
Da marinha brasileira

Já pensaram, amigos, o que um cartesiano de carteirinha, um filho da tradição racionalista das luzes, diria disso tudo? Eu não faço a menor questão de saber. Prefiro acreditar, como disse o mestre João Rosa, que o homem não morre; o homem se encanta. Volto ao tema em breve.

Axé.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

PROFISSÃO DE FÉ

(Eu, o maiorzinho, ao lado de meu irmão Alexandre, na função de Ogã da casa de Xambá de minha avó, Deda de Xangô, nos anos 70)

Senhoras e senhores, sou um camarada convencido da absoluta falência dos modelos ocidentais de interpretação do mundo, que produzem um radical e perverso desencantamento do mesmo. O ocidente inventou os famosos "ismos" - o iluminismo, o liberalismo, o capitalismo, o marxismo, o jornalismo, o pós-modernismo...ismos pacas, enfim. Não vejo, aí, qualquer chance de salvação.

Sou, nesse sentido, um adepto da idéia de que os legados ocidentais tem que ser redimensionados. Produzem, insisto radicalmente nisso, um mundo insosso, previsível e desencantado. A herança da salada judaico-cristã e tecnicista gera culpa, arrogância, desejo de consumo e depressão em série. Eis o que a arrogante cultural ocidental produziu - depressivos em massa, miseráveis em série e consumidores em bandos.

Eu, de minha parte, fui agraciado pelos deuses. Nasci em uma família adepta dos Orixás. Minha vó - que me criou - era uma Yalorixá pernambucana radicada no Rio de Janeiro e comandava um terreiro de xambá na cidade de Nova Iguaçu. Para os que não sabem, o xambá é um culto de origem nagô, como os candomblés da Bahia, fortemente mesclado com elementos bantos e ameríndios.

Cresci ali, fascinado pela dança magnífica dos Orixás, impressionado pela imponência dos caboclos e seduzido pelo toque misterioso dos tambores que enchiam de encantamento as minhas madrugadas.

Quando entrei para a faculdade de História, resolvi, com a arrogância clássica dos estudantes das ciências humanas - sempre se sentindo capazes de entender o mundo, compreender os anseios do povo e apresentar soluções políticas messiânicas para os males sociais - negar a religião ( o ópio do povo, ora bolas) e declarar com vigor meu ateísmo.

Mas, num momento absolutamente vazio da minha vida, reencontrei, de uma forma impressionante (um dia eu conto), o caminho da infância e o toque dos tambores. Mergulhei sem receios, fiz amigos, compartilhei da mesa farta das comidas de santo e fui consagrado, sob a condução de Ogum, meu pai, sacerdote de Ifá, reestruturando o elo de ancestralidade que a minha velha avó teceu.

Esse é o meu mundo, essas são as minhas comidas, esses são os meus deuses. Eles dançam o tempo todo. Não acredito em milagres, mas creio no axé - a potencialização do deus que há em mim e que me ajuda a lidar com os perrengues do cotidiano.

Se eu faço política? Claro que sim. Eu faço política quando canto, toco, danço, imolo animais, respeito os mistérios do rio, evoco meus ancestrais na casa de Egun e digo aos arrogantes de plantão que cultuo os deuses que atravessaram o Atlântico nos porões imundos dos tumbeiros para nos civilizar.

Orunmilá, o senhor do Ifá, o mais sábio dos Orixás , conhecedor dos destinos, determinou que assim fosse. Ogum autorizou. Obatalá é o dono da minha casa - meu ilê. Exu, o compadre, mora na minha varanda, vive na minha esquina e me acompanha nas cervejas e batuques; ele bate comigo palmas ritmadas no compasso do partido alto. É dele, sempre será dele, Exu Odara, o senhor da alegria, o primeiro gole de cada entardecer da minha vida. Olorum modupe!

BABALAWOS NO BRASIL

(Texto escrito em parceria com o babalawo Ifasinmy, Cláudio Ribeiro Falcão)

A tradição sobre a implementação dos primeiros axés de origem nagô no Brasil aponta para o papel fundamental dos babalawos. Nos relatos sobre a fundação da Casa Branca do Engenho Velho, se destaca a famosa viagem de Iyanassô ao continente africano, da qual teria retornado acompanhada por Rodolfo Martins de Andrade, o babalawo Bamboshe Obitiku. Outro babalawo, Martiniano Eliseu do Bonfim, o mais famoso da Bahia em seu tempo, teve papel crucial na formação do Axé Opô Afonjá. Pouco depois, Pierre Fatumbi Verger desempenhou, como sacerdote e estudioso, a função de fazer a ponte entre Brasil e África, reafirmando a função do Atlântico Sul como um espaço civilizatório.

Apesar do papel fundamental na estruturação do culto, a figura do babalawo foi perdendo espaço no país, até chegar praticamente a desaparecer. Quanto a este ponto, Roger Bastide indica um conflito por status social entre babalorixás e babalawos, que culmina com a vitória dos primeiros. Diz também que a derrota do babalawo foi, em grande parte, a de um sistema de adivinhação mais complexo, com o opelê de Ifá e os caroços do dendezeiro (ikins), para um outro mais simples, com os búzios. Bastide não considerava, porém, essa história encerrada. Para ele, os búzios tinham vencido o colar de Ifá, mas nova ofensiva e regresso de Ifá eram sempre possíveis.

Tal fato, por determinação de Olorum, aconteceu. Nas duas últimas décadas do século XX os babalawos voltam a ser ativos personagens da religião de orixá no Brasil, com destaque maior para a tradição nigeriana em São Paulo e para a tradição cubana no Rio de Janeiro. No caso do Rio, nossa seara, alguns esforços para a retomada do conhecimento de Ifá foram feitos no final dos anos 70 por estudantes nigerianos, mas apenas com a chegada do babalawo cubano Rafael Zamora Dias, o culto sistematizou-se. Em breve, iniciações de sacerdotes de Ifá estavam sendo feitas no Brasil. Somos, os autores deste texto, babalawos iniciados neste contexto de retomada, no final de 2001. Este retorno dos babalawos traz uma série de riscos e desafios que passamos a discutir.

Inicialmente é necessário dizer que o desaparecimento da figura do babalawo não significou a perda da essência de Ifá. Vários procedimentos litúrgicos adotados no candomblé encontram suas bases nos versos de Ifá, mesmo que Iyalorixás e Babalorixás desconheçam as exatas referências. Como exemplo, podemos citar as regras de conduta que as yaôs devem seguir. Elas se referem ao exercício da paciência, da humildade e do respeito à hierarquia, e fazem parte da busca pelo Ìwàpèlè, o bom caráter, cujos princípios se encontram nos versos do Odú Ogbe-Otura. Para o iorubá, a busca por Ìwàpèlè é o principal objetivo da existência humana, e a essência da conduta religiosa consiste em cultivar o bom caráter.

O grande risco que a volta dos babalawos apresenta está, queremos crer, na velha disputa entre estes e os sacerdotes de orixá, já delineada por Bastide nos anos 40. Para evitá-lo, é necessário que os babalawos reconheçam a tradição de orixá brasileira e a excelência de vários de seus sacerdotes. Alguns babalawos devem tomar cuidado ao negar a tradição de orixá, já que a mesma encontra-se plenamente justificada nos textos sagrados de Ifá. Acreditar que o culto de Ifá é desvinculado do culto de orixá, e vice-versa, é uma falsa questão, que não se justifica liturgicamente. Faz-se necessário que babalawos, iyalorixás e babalorixás reflitam sobre esse problema, em busca de uma convergência religiosa que engrandeça a religião no Brasil.

Considerando que a reintrodução dos sacerdotes de Ifá é recente, estes não podem tentar afirmar o seu poder e sua presença em uma discutível idéia de pureza e superioridade hierárquica. A valorização do seu papel virá do reconhecimento de que há muito que se aprender com a tradição de orixá que o Brasil desenvolveu. O reconhecimento dos babalawos pelos sacerdotes de orixá só se estabelecerá em razão da excelência litúrgica e postura ética e moral dos sacerdotes de Orunmilá.


É preocupante, também, que sacerdotes de orixá e intelectuais ligados a casas de culto, que muitas vezes atuam como verdadeiros porta-vozes das mesmas, insistam em ignorar o retorno de Ifá e dos babalawos ao Brasil, muitas vezes considerando que estes fazem parte de uma religião distinta da sua. Cabe, então, aos terreiros de candomblé reconhecer a figura dos babalawos, bem como a possibilidade de revitalização do culto que o conhecimento da palavra de Orunmilá permite.

Como exemplo, podemos mencionar o culto aos ancestrais, o sentido litúrgico do ritual do axêxê, o já citado conceito de Ìwàpèlè, a cosmogonia e os valores éticos e morais da religião, o papel da energia feminina das Iyami e as funções desempenhadas por Exu. Todos esses elementos, sem os quais o próprio sentido da religiosidade se perde, estão fundamentados no corpo literário de Ifá.

Quando escreveu fundamental resenha sobre o livro Candomblé da Bahia, obra seminal de Roger Bastide citada acima, o escritor Nei Lopes ressaltou que a presença de babalawos e a força que adquiriu o culto a Ifá foram os acontecimentos mais relevantes que a religião afro-brasileira vivenciou nos anos de 1990. Cabe, agora, dimensionar esse fato para que a religião se fortaleça cada vez mais na nossa terra.

Aboru Boye