quarta-feira, 27 de agosto de 2008

INTRODUÇÃO AO CONCEITO DE ODU IFÁ

Há no Brasil uma grande curiosidade das pessoas em conhecer o orixá de cabeça; quem é seu pai ou sua mãe. É compreensível. Creio, porém, que não devemos perder a dimensão de que é mais importante conhecer o odu pessoal que o orixá de cabeça. Vou tentar explicar a razão . Vamos ao primeiro passo.

Odu é uma espécie de signo que rege o nascimento de cada pessoa. A tradição iorubá aponta a existência de dezesseis signos principais, cujas combinações perfazem 256 odus. Cada um de nós é regido por um desses odus. Cada odu é composto de uma infinidade de poemas, relatando a história da criação e o papel que os orixás e uma série de outras espiritualidades exerceram nessa história primordial. O conjunto dos odus forma, então, o texto canônico sobre o qual se sustenta a tradição de Ifá.

Dentro dos odus estão os caminhos e as possibilidades que cada um de nós carregará para o resto das vidas. Nesse sentido, odu é o destino possível de cada um. Meu odu, por exemplo , contém as coisas que devo evitar, os eventos que podem colocar em risco a minha vida, as comidas que me fazem bem, as comidas que me fazem mal, minhas aptidões profissionais, minha relação com meus ancestrais, as folhas que me curam, as folhas que me matam, os ebós que me salvam, os orixás que me acompanham ... O que salva, no meu odu , pode matar, no odu de outra pessoa. Nenhum homem escapa ao seu odu. Vive os caminhos irê (positivos) ou ibi (negativos) , mas não escapa. Odu é o designo de Olorum, o deus maior.

Em cada odu, os poemas relatam as histórias dos orixás e de outros elementos encantados da natureza. Eu, por exemplo, sou filho de Ogum. No meu odu, Ogum não aparece como o guerreiro violento e conquistador. Ogum surge como o inventor do arado; agricultor e mestre ferreiro. A tendência é que a energia de Ogum se manifeste na minha vida dessa forma mais branda.

Tenho irmãos de Ifá filhos de Ogum que, entretanto, possuem odus onde os poemas que envolvem o orixá falam de violência e guerra. É assim que a energia de Ogum pode se manifestar para eles. Não se compreende a natureza do orixá de cabeça sem o conhecimento do odu e dos caminhos em que nele o orixá se apresenta. Para efeito de comparação, quem conhece apenas meu orixá sabe em que cidade eu moro. Já é muita coisa. Quem conhece meu odu pessoal, com seus caminhos, e sabe como a energia do meu orixá se manifesta nele, tem uma cópia da chave da minha casa.

Não se faz - ou não se deveria fazer - santo na cabeça de uma pessoa sem o conhecimento prévio do odu da mesma. Exemplifico. Digamos que o iaô que vai se iniciar seja filho de Xangô. Há um dos 256 odus - daqueles famosos, que todo babalaô conhece - em que Ifá revela que a energia de Xangô é forte demais para ser consagrada na cabeça de alguém. A simples menção do nome deste odu evoca os poderes do fogo. Imaginem raspar Xangô no ori de um noviço que seja desse signo. Não se raspa em nenhuma hipótese. Assim Ifá ensina, assim o sacerdote deve agir. Osa Irosun nos diz em um de seus versos : Só Orunmilá pode revelar o orixá de cabeça de cada pessoa e só Orunmilá pode determinar que orixá deve ser consagrado na cabeça de cada um. É por isso que conheço exemplos louváveis de grandes mães de santo que não fazem orixá na cabeça de ninguém sem antes consultar um babalô, para confirmar se os procedimentos litúrgicos adotados estão de acordo com as ordens do único orixá que pode estabelecer isso : Orunmilá.

Após essa rápida introdução, surge a dúvida : como se revela o odu de cada um ?

A resposta envolve a realização de uma cerimônia de iniciação relativamente complexa. Falarei sobre ela no próximo texto.
Iboru Boya !

O CURSO DE MITOLOGIAS AFRICANAS

Amigos, recebi duas mensagens de leitores querendo informações sobre o curso de Mitologias Africanas que ofereci nos últimos anos dentro de um programa de pós-graduação e oferecerei novamente em novembro. Como o curso já está em andamento - com um time de professores da melhor qualidade, como Conceição Evaristo, José Flávio Pessoa de Barros, Claudio Ribeiro Falcão e outros - resolvi disponibilizar a ementa que preparei, para que os companheiros tenham uma idéia da linha de trabalho e , quem sabe, possam adotar algumas idéias como guias de estudos. Aceito sugestões.

MITOLOGIAS AFRICANAS

O MITO COMO CONCEITO E OBJETO
- O senso comum e o mito como fabulação.
- Levi-Strauss e as estruturas mitológicas.
- Raoul Girardet e as funções políticas do mito.
- Mircea Eliade e mito como experiência vivida.
- O mito como objeto de especulação.
- Mito e História.

MITO E TEMPO NAS SOCIEDADES AFRICANAS
- O tempo cíclico
- A criação
- As versões recusáveis do real.

- O CORPO LITERÁRIO DE IFÁ
- A importância do oráculo.
- O opelê, os ikins e o meridilogum – instrumentos de contato com o sagrado.
- Os 16 Odús da criação e os seus conjuntos de mitos.
- Os 250 Odús secundários e os seus conjuntos de mitos.

OS POEMAS DA CRIAÇÃO
- Relatos, análises e discussões de poemas sagrados entre os Iorubás e os Fons.

BIBLIOGRAFIA BASICA
Abimbola. W. – Ifá: An Exposition of Ifá Literary Corps. Ibadan.Oxford University
Press, Nigeria. 1976
Bascom. W.R – Ifá Divination. Communication Between Gods and Men in West Africa
Indiana University Press. 1969.
Beniste, J. – Orun Aiye. Bertrand Brasil. Rio de Janeiro. 2000
Bolagy Idowu. E – Olodumare. Longmans. Londres. 1921
Eliade, Mircea. – Obras Completas. Martins Fontes. 1989
Girardet, Raoul – Mitos e Mitologias Políticas. Cia. das Letras. São Paulo, 1989

Muita coisa sobre essa temática aparecerá por aqui.
Iboru Boya !

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

O FISCAL DE OLORUM


Não se entende a amplitude da religião de Ifá sem uma compreensão do papel que nela representa o Imole Exu. Reconhecer a importância deste orixá é um passo fundamental para uma visão correta sobre o sistema religioso iorubá.

Diz Ifá que Olorum criou Exu a partir da Érupé (lama) e deu a ele o atributo de ser o grande Âgbá (ancestral). Sua função é a de dotar os seres de capacidade de movimento. Exu é a energia que está presente em tudo que existe. Dinamização, transformação e mobilidade são possibilidades inauguradas por esse orixá. A ausência de Exu é, portanto, a negação da vida.

Os iorubás acreditam que o homem tem a possibilidade de conhecer e alterar o seu destino. O conhecimento é revelado pelo oráculo de Ifá, sistema adivinhatório regido pelo orixá Orunmilá, que por determinação de Olodumare é o Eleripin (testemunha do destino) de todos os homens. A partir do conhecimento do destino, a alteração das coisas maléficas pode ser conseguida com a realização de ebós, oferendas e sacrifícios determinados por Orunmilá. A realização do ebó evoca energias dotadas de axé (força) suficiente para transformar o ona buruku (mau caminho) em ona rere (bom caminho).

Neste sistema, Exu é um personagem fundamental. Uma de suas atribuições é a de ser o fiscal de Olorum. É ele, portanto, que fiscaliza o babalaô, sacerdote que consulta o oráculo, para que este não minta ao consulente.

Exu é também o Elebó, senhor das oferendas. É sua função verificar se as oferendas estão sendo feitas conforme a determinação de Ifá e cabe a ele levá-las ao Orum para que sejam aceitas. Caso o ebó seja bem sucedido, Exu cumpre a determinação de trocar os maus caminhos pelos positivos. Se as oferendas não forem feitas conforme o estabelecido, Exu é aquele que, na qualidade de fiscal de Olorum, pune os responsáveis.

É Exu, portanto, que dinamiza um dos pilares fundamentais da religião dos orixás, a consulta oracular como caminho de transformação do destino de cada um. Sendo assim, fica claro que, para o iorubá, destino é sinônimo de possibilidades que se realizam ou não. O porvir, ao ser previamente conhecido, pode ser alterado.

Vale mencionar, e esse é um aspecto fundamental, que o ebó não se destina simplesmente a resolver problemas. Há percalços que são inevitáveis, e estão no odu que rege o nascimento de cada um. A função do ebó é , então , dotar a pessoa de axé para que os problemas possam ser enfrentados com maiores possibilidades de sucesso. O portador do axé é Exu.

É neste sentido que Exu costuma ser representado fumando cachimbo e tocando flauta. Ele fuma o cachimbo como quem absorve e ingere as oferendas, e toca a flauta como quem restitui o axé, a energia vital.

Outra representação famosa de Elegbara é a do falo ereto. O pau duro de Exu, que tanto chocou os pudicos missionários cristãos que foram à África no século XIX, nada mais é que o exemplo maior de dinamismo, movimento e vitalidade, atributos do senhor da transformação.

Foi provavelmente esta última imagem, um Exu teso e viril, que levou os europeus a vinculá-lo ao demônio judaico-cristão. Obcecados pelas noções de culpa e pecado, produziram em seus estudos uma visão que, pelo desejo de dominação, pelo medo, pela desonestidade e, sempre, pela ignorância, distorceu e comprometeu a compreensão do papel primordial desempenhado por Exu no sistema religioso iorubá. Recuperá-lo em sua dimensão legítima é, portanto, função de todos os que professam a religião que Orunmilá ensinou aos homens.


Iboru boya !